domingo, 31 de agosto de 2008

Sexta Semana

Essa semana estou com pouco ânimo para escrever. Algumas coisas mudaram nestes últimos tempos. A vida é como um barco que a gente direciona pra direita ou esquerda sempre achando que os caminhos serão diferentes, mas o mar, sempre tão presente, parece que não muda! Sobre isso, meu "barco", que é a minha vida, tem feito diversos percursos (espero que não esteja em círculos); ora professor, ora universitário, ora pianista, ou compositor, ou fazendo trilhas para vídeo ou teatro.
Enfim, mudar assim cansa um pouco porque não se fica bom em nada. Essa semana ficou clara uma coisa que eu já desconfiava. Ser "educador cultural", professor, é uma carreira em si. O "saber transmitir" é tão ou mais amplo que o conteúdo da transmissão. Música é uma coisa infindável, e sua transmissão, ensino, também. Eu vim de uma semana que me fez pensar muito sobre o que quero fazer. Entre a quinta semana e a sexta semana, houve um intervalo, também de uma semana, na qual eu fui fazer um curso de análise musical, na Unicamp, com um professor chamado Claude Ledoux. Como vou prestar mestrado logo mais, utilizei o curso para ver se rememorava essa disciplina chamada "análise musical", que vai cair na prova.
Esse curso, e a própria perspectiva do meu projeto de mestrado, me dividem um pouco entre a carreira de educador e de compositor, a atividade acadêmica e a social. Esse professor, chamado Claude Ledoux tem uma excelente reputação como pedagogo, além de artista. As aulas ficaram lotadas, com pessoas sentadas no chão, e pra fora da sala, inclusive, todos os professores de composição da unicamp frequentaram as suas aulas, tamanho era seu carisma e conhecimento. Não é a toa que ele é professor de análise musical no conservatório de Paris, o conservatório mais importante do mundo. (se é que se pode dizer isso.rs). De todo modo, o professor Ledoux era extremamente simples, e saímos para conversar, beber algo depois da aula e nos tornamos amigos. Eu o ajudei a encontrar um hotel aqui em São Paulo, etc. Uma das principais lições das suas aulas, foi destacar a importância, mesmo no círculo de especialistas, de se voltar à simplicidade da escuta. Escutar, sem teorizar, e incluir a experiência humana como elemento de análise, ou seja; por mais que hajam teorias, cada ser humano é um, e tem suas próprias experiências, não há certo e errado na música. É o que gostaria de passar às crianças do São Norberto: a escuta, da maneira mais humanista possível.
Nessa semana houveram inúmeros imprevistos. Tentando retomar o que trabalhei com o Rimsky Korsakov, nas duas semanas anteriores, pensei em seguir estabelecendo relações entre música e imaginário. Sempre tentando expor as crianças ao repertório instrumental, orquestral. Sem letra. Não porque a música erudita seja mais apropriada ou melhor que a música popular, ou canção. É apenas porque é uma escuta que propõe um desafio à escuta, a atenção, e tem muito espírito humano dentro dela. Tanta paixão quanto uma música cuja letra fala de amor.
Para continuar o percurso música - imaginario, trouxe um filme chamado Fantasia 2000, no qual diversos animadores contratados pela Walt Disney desenham a partir de diversas obras de música erudita. Houve uma versão mais antiga em 1940, que foi um fracasso de público e crítica, e Fantasia foi sendo considerado aos poucos a produção mais "artística" da empresa, que por fim fez uma reedição do antigo clássico, chamando de Fantasia 2000. Conectei o DVD aos monitores de Audio, e o som ficou muito bom. As crianças realmente se envolvem com a música e os desenhos. Porém, o fato é que, educacionalmente, é difícil esperar das crianças uma percepção da música à priori das imagens. Elas fazem o contrário, prestam atenção e seguem a lógica do desenho. De todo modo, há música o tempo inteiro, já é um começo. Mas apenas um começo.

domingo, 17 de agosto de 2008

Quinta semana

Olá, vi seu recado na secretária eletrônica. Eu estava dando aula lá na creche, fui na quinta, mas não fui na sexta, porque trabalhei na madrugada anterior. Na aula de quinta eu trabalhei a mesma música, só que agora com o desenho. Só uma turma entrou nessa de desenhar calmamente, teve outra que rasgou o papel inteiro... não se se é a música que eu estou trabalhando que agita demais eles (KORSAKOV, Rimsky - Sheherazade, 2o movto). Eles entram na viagem da música e começam a correr pela sala, pular, etc. Difícil controlar os ânimos. E que ânimos!

bem, não posso desanimar, preciso pensar em outra coisa, e aperfeiçoar essa idéia do desenho com música.

beep beep
MANU

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Quarta semana

Olá, recebi sua carta mas essa semana os trabalhos foram intensos e não tive tempo de responder. Puxa vida, que pena que você foi assaltada! É, essa cidade não é fácil. Inclusive, lá no São Norberto ouvi falar que teve um caso de roubo de trufas no ano passado, mas foram só boatos na hora do almoço, sabe como é né. Não é possível que aqueles anjinhos tenham feito algo assim!

Não te mandei notícias esses tempos porque fiquei duas semanas sem ir lá na creche. Primeiro veio aquele curso, que aliás, merece uma postagem especial só pra comentá-lo, e depois, fui trabalhar como técnico de som pra filmagem de um documentário sobre o Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negres o COPENE. Muito incrível, cada história de vida dos pesquisadores e a batalha toda para fazer com que os descendentes de africanos no Brasil se libertem dos sinais e injustiças que a escravidão deixou ao longo da história do país, que como se sabe, tem uma péssima distribuição de renda. Aqueles que tiveram antepassados escravos, sabem muito bem que a abolição da escravidão não melhorou muito as condições de vida do negro, salvo com muita garra.

Falando em garra, o começo dessa semana lá com a negadinha do São Norberto, foi bem difícil.



difícil

di.fí.ciladj m+f (lat difficile)

1 Que não é fácil, que custa a fazer, que dá trabalho. 2 Penoso: Movimentos difíceis. 3 Árduo, laborioso: Tarefa difícil. 4 Complicado. 5 Intrincado. 6 Pouco possível; improvável: É difícil que isso aconteça. 7 Arriscado, perigoso. 8 Custoso de contentar; exigente. 9 Avesso, contrário, relutante. 10 Custoso de compreender; obscuro. 11 Intransitável: Caminhos difíceis. Antôn (acepções 1, 2, 3, 4, 5 e 10): fácil. (Dicionário michaelis).



E olha que fiz com grupos menores... e mesmo assim, que baile! Só no segundo dia é que eu peguei a manha. É! Tipo aquela coisa que a faculdade não ensina. Você sente que precisa mudar uma entonação de voz, uma estratégia, e as coisas mudam drasticamente.



Ainda estou pensando no que fez com que as aulas, de repente, começassem a dar certo. Acho que tem a ver com o que a Rita me falou uma vez, que há uma "maneira especial" de falar, para atrair a atenção dos pequenos.



Primeira coisa: quanto menos explicar melhor. Quando eu tentava convencê-los a ouvir uma música, eles, durante a minha fala, puxavam uma revistinha (ooo tioo olha eu achei a branca de nevee!) ou mostravam o tênis novo (ooo tioo manuel olha o tenis novo olha olha olha), ou alguma coisa do gênero. E daí, você chamava a atenção de uns, e outros já tinham levantado pra ver o que tinha atrás do biombo (tiooo tem fantasia aqui dentro do armário!!), daí você vai chamar eles, e outros dois encontram seu celular recarregando (oo tio que legaal seu celulaar, é seu messmo??) . Daí você pensa que já está tudoo dominadoo e um deles descobre como liga o piano, e o outro já tá mexendo no computador... enfim... dá pra sentir o nível de ordem de uma aula na nova "sala de música", cheia de novidades para as crianças.



No dia seguinte, resolvi fazer diferente. Eu pegava as crianças na sala, o grupinho, e tentava estabelecer um laço de cumplicidade com eles. Era pra gente descer, invisíveis, pra ninguém ver que a gente estava indo pra salinha, só nós. E eu sempre ia à frente pra ver se não havia nenhum perigo no caminho. Detalhe, eu não explicava nada. Só o fato de ir olhando na frente e fazendo gestos como se estivéssemos entrando em territórios desconhecidos, eles já captavam na hora. No pátio, eu andava sobre as linhas da quadra, bastou em andar com os braços estendidos, todos entendiam que era para se equilibrar sobre a linha, bastou eu comentar que nao queria sair da linha porque senão iria cair no lago verde da quadra, todos entenderam que seguir a linha era necessário, não porque o professor mandou, mas sim para não "cair no lago". E faziamos um percurso cuidadoso, com toda a atenção que envolve o ato de se equilibrar numa linha. Fizemos inclusive os caminhos com as linhas invisíveis. Era com esse percurso que eles entravam no território que eu queria, esse território da imaginação. Ou talvez, quem entrava era eu, visto que eles já vivem nele... a gente é que acaba quebrando o encanto. Antes de entrar na sala, eu pedia para eles esperarem um momento, sempre com gestos, nunca falando, e tudo ficava silêncioso e na expectativa. Então, eu olhava para dentro da sala, olhava de volta pra eles, que esperavam ansiosos para ver se estava tudo certo lá dentro. O Wesley Max, do 3o nessa hora chegou perto de mim e perguntou cautelosamente: "Ei tio, a barra tá limpa aí dentro?" Ainda bem que eu não ri na hora... "Acho que sim... vamos entrar" E todos entravam na ponta dos pés, enquanto eu apontava para o tapete. Ao invés de explicar que iria colocar uma música e que era pra eles prestarem atenção , e que iria contar uma história, eu passei a, assim que eles entrassem, me sentar, e colocar a música. Em algumas turmas, mesmo com a música começando e eu iniciando a narração da história (junto com a música), havia crianças que se dispersavam. Eu então, enquanto contava a história, as vezes "saía dela" para chamar a atenção, e voltar a contar. Percebi que isso quebrava o clima, mas não via outro meio. Depois, passei a simplesmente ignorar as crianças que se dispersavam, mergulhando inteiramente na história, narrando da forma mais teatral possível. Muito interessante que as crianças dispersas, de repente voltam pra história, de modo muito ativo, fazems os gestos que, se a gente fosse explicar ou pedir pra eles fazerem, eles talvez nem fariam com tanta entrega. Percebi que, apostando nessa entrega total, é muito provável conseguir envolver a todos em determinado momento. O meu objetivo era na verdade mesclar duas coisas: MÚSICA + SENSAÇÃO. Ou melhor, "ensinar que" Música = Sensação. Ou Sensação + Imaginação = Música. Ou movimento + sensação = Música. Ou, sensação + música = movimento. E é incrível como as crianças realmente vivenciam a música de modo intenso por meio de movimentos. A sala de concerto ideal para crianças seria uma sala linda onde elas pudessem dançar livremente. Elas se movimentam por um impulso muito natural, por uma vontade genuína que a música inspira. Ainda mais a criança brasileira, que tem tanto ritmo. Foi muito gratificante pra mim essas descobertas, e conseguir fazê-las mergulhar numa música, mesmo que ainda com a atuação da narrativa. O ideal é, aos poucos, ir tirando as histórias da voz do educador, e fazendo com que as crianças se permitam o contato com a imaginação delas mesmas, com o fluxo irrefreável do inconsciente, quando ouvimos uma música sem letra. Quando a música tem letra, a poesia dá o sentido. Música sem letra fica toda a atenção (ou distração) para os sons, sem significado literal, o que é um trabalho incrível de abstração, sensibilidade e imaginação.

As aulas, no início eram mais longas, depois que consegui esse outro formato, elas passaram a ser mais curtas, porém bem mais intensas. É muito bom ter o privilégio de trabalhar do jeito que quer e de poder experimentar. Preciso agradecer ao pessoal do São Norberto. Enfim, e você, tá trabalhando onde mesmo?
abraços
MANU